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A Proteção Jurídica contra a Injúria Racial e a Violência de Gênero Uma Análise Interdisciplinar

  • francisconunes12
  • 3 de abr.
  • 43 min de leitura

 

Sumário

  1. Introdução


     1.1. Contextualização: Racismo e violência de

Sumário

  1. Introdução


     1.1. Contextualização: Racismo e violência de gênero no Brasil


     1.2. Objetivo e metodologia do artigo

  2. Injúria Racial e Racismo no Direito Penal Brasileiro


     2.1. Diferença entre injúria racial e racismo


     2.2. Fundamentos legais e constitucionais


     2.3. A gravidade social das ofensas discriminatórias

  3. Evolução Legislativa e Jurisprudencial


     3.1. Do art. 140, §3º à Lei 14.532/2023


     3.2. Decisões paradigmáticas: STJ e STF (HC 154248)


     3.3. Implicações práticas da nova legislação

  4. A Constitucionalização do Combate ao Racismo


     4.1. Princípios constitucionais e objetivos da República


     4.2. Tratados internacionais e o direito antidiscriminatório


     4.3. O impacto da Convenção Interamericana contra o Racismo

  5. Interseccionalidade: Raça, Gênero e Classe na Violência Doméstica


     5.1. A teoria da interseccionalidade


     5.2. Dados estatísticos e vulnerabilidades da mulher negra


     5.3. Racismo institucional e barreiras de acesso à Justiça

  6. Lei Maria da Penha e Agressões Raciais entre Mulheres


     6.1. Aplicabilidade da LMP em ofensas racistas


     6.2. Jurisprudência envolvendo mulheres negras vítimas de injúria racial


     6.3. Novas diretrizes com a Lei 14.550/2023

  7. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais


     7.1. A dignidade como fundamento de proteção antidiscriminatória


     7.2. Direitos fundamentais violados: honra, igualdade, segurança


     7.3. Racismo e machismo como negações da humanidade

  8. O Papel do Ministério Público e das Defensorias


     8.1. Função institucional no combate à discriminação


     8.2. Atuação criminal, cível e política


     8.3. Núcleos especializados e ações coletivas

  9. Estratégias Jurídicas de Responsabilização e Tutela da Vítima


     9.1. Medidas penais e processuais


     9.2. Medidas protetivas, ações civis e juizados especializados


     9.3. Atendimento multidisciplinar e apoio comunitário

  10. Propostas de Aperfeiçoamento Legislativo e Institucional


     10.1. Capacitação, dados e políticas públicas integradas


     10.2. Fortalecimento institucional e ações afirmativas


     10.3. O desafio de tornar a igualdade uma realidade concreta

 

 

 

 

 

 

Introdução


A persistência de desigualdades raciais e de violência de gênero no Brasil exige uma análise interdisciplinar do Direito, combinando perspectivas do Direito Penal, Constitucional, dos Direitos Humanos e do Direito Antidiscriminatório.

O crime de injúria racial, forma específica de ofensa contra a honra que envolve elementos raciais, e a violência doméstica contra a mulher são fenômenos que frequentemente se entrelaçam, especialmente quando a vítima é uma mulher negra. Ambos configuram graves violações à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais, desafiando o ordenamento jurídico brasileiro a oferecer respostas eficazes.

Este artigo tem por objetivo examinar, de forma teórica e geral, o tratamento jurídico da injúria racial e da violência doméstica sob a perspectiva de gênero e raça, abordando conceitos, evolução legislativa e jurisprudencial, fundamentos constitucionais e internacionais, aspectos de interseccionalidade (raça, gênero e classe), aplicação da Lei Maria da Penha em casos de agressões raciais entre mulheres, a tutela da dignidade humana e direitos fundamentais em perspectiva antidiscriminatória, o papel das instituições (Ministério Público e Defensorias) na promoção da igualdade, estratégias de responsabilização e proteção às vítimas, bem como propostas de aperfeiçoamento legislativo e institucional. Busca-se, assim, contribuir para o debate sobre o enfrentamento do racismo estrutural e da violência de gênero de forma integrada, evidenciando os avanços e desafios no ordenamento jurídico brasileiro.

 

Capítulo 1 – Conceito de Injúria Racial e Racismo no Direito Penal Brasileiro

No Direito Penal brasileiro, é fundamental distinguir injúria racial de racismo, pois embora ambos envolvam discriminação por raça, cor, etnia ou origem, diferem quanto ao objeto atingido e à tipificação jurídica​.

Injúria racial é a ofensa dirigida a alguém específico, utilizando elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem para insultar a dignidade ou o decoro da vítima​.

 Trata-se de crime contra a honra pessoal, previsto originalmente no art. 140, §3º do Código Penal, inserido pela Lei 9.459/1997, com pena de reclusão e multa​. Já o racismo constitui conduta discriminatória voltada não a um indivíduo determinado, mas a uma coletividade ou grupo racial, traduzindo práticas que negam ou restringem direitos em função da cor ou etnia​.

 As condutas racistas estão tipificadas na Lei 7.716/1989 (conhecida como Lei Caó ou Lei do Crime Racial), abrangendo situações como impedir o acesso de alguém, por motivo de preconceito racial, a empregos, escolas, estabelecimentos comerciais, meios de transporte, ou veicular discurso de ódio e discriminação (a exemplo do crime de racismo do art. 20 da Lei 7.716)​.


Do ponto de vista conceitual, enquanto na injúria racial a ofensa é individualizada – por exemplo, chamar alguém de palavras pejorativas referentes à sua raça –, no racismo a ofensa ou discriminação é coletiva, manifestando-se em atos como segregação ou negação de serviços a determinada raça​. Em síntese, “o que diferencia é o direcionamento da conduta: na injúria, a ofensa recai sobre um indivíduo específico; no racismo, recai contra uma coletividade”​.

 Essa distinção, contudo, vem se atenuando no plano jurídico, diante de recentes alterações legislativas que aproximam as consequências penais da injúria racial às do racismo, conforme será visto adiante. Importa ressaltar que ambas as condutas – injuriar alguém por motivo racial ou praticar atos de racismo – são consideradas formas de discriminação racial e afrontam princípios basilares da ordem jurídica, como a igualdade e a dignidade humana.


Historicamente, a injúria qualificada por preconceito (injúria racial) era tratada como um crime de menor potencial ofensivo em comparação ao racismo. Tipificada entre os crimes contra a honra, dependia da iniciativa da vítima para a persecução penal (ação penal privada ou pública condicionada à representação) e tinha pena relativamente branda (detenção de 1 a 3 anos, antes das alterações recentes)​.


 Por outro lado, os crimes de racismo, definidos na Lei 7.716/1989, sempre foram considerados de maior gravidade, perseguíveis mediante ação penal pública incondicionada e sancionados com penas mais elevadas (reclusão, em alguns tipos variando de 2 a 5 anos ou mais) em razão do seu alcance social mais amplo. Ademais, desde a Constituição Federal de 1988, a prática do racismo foi alçada à categoria de crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII, CF)​, denotando um repúdio absoluto do constituinte a tais condutas. Já a injúria racial, por anos, não recebeu expressamente o mesmo tratamento constitucional, sendo vista por parte da doutrina e jurisprudência como figura distinta, de menor relevo. Isso gerou debates quanto à correta classificação da injúria racial: seria ela apenas um delito contra a honra individual ou também uma manifestação do racismo, sujeita ao rigor constitucional? Essa questão tornou-se central na evolução jurisprudencial recente, conforme veremos a seguir.

 

Capítulo 2 – Evolução Legislativa e Jurisprudencial: Lei 14.532/2023, STF (HC 154248) e Outros Marcos


A trajetória legislativa e jurisprudencial brasileira demonstra um fortalecimento progressivo do combate às ofensas raciais, equiparando cada vez mais a injúria racial ao racismo. Inicialmente, com a promulgação da Constituição de 1988, firmou-se um compromisso claro de enfrentamento ao racismo: o art. 5º, XLII da Carta estabelece que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

 Em cumprimento a esse mandamento, foi editada a Lei 7.716/1989, definindo diversos crimes de racismo. No entanto, condutas de ofensa verbal direcionadas a pessoas específicas por motivos raciais continuaram tipificadas separadamente no Código Penal, como forma qualificada de injúria (art. 140, §3º, CP), inserida pela Lei 9.459/1997​.


 Essa separação implicava consequências distintas: os crimes da Lei 7.716 eram imprescritíveis e inafiançáveis (por força da Constituição), enquanto a injúria racial, por não estar expressamente mencionada no texto constitucional, seguia o regime comum (prescritível e passível de fiança)​.


 Além disso, a injúria racial, por ser crime contra a honra, originalmente exigia representação da vítima para que o Ministério Público pudesse prosseguir com a ação penal.


Nas décadas seguintes, a sensibilidade social e jurídica para com a gravidade da injúria racial aumentou, levando a mudanças importantes. Um marco jurisprudencial ocorreu em 2019, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu decisão reconhecendo que o crime de injúria racial constitui uma espécie de racismo, devendo ser, portanto, imprescritível à luz da Constituição​.


Esse entendimento foi adotado no julgamento de um caso em que a ré havia ofendido uma funcionária chamando-a de “negrinha nojenta, ignorante e atrevida” – conduta enquadrada como injúria racial (art. 140, §3º, CP)​. O STJ entendeu que a natureza discriminatória dessa injúria a aproximava do conceito de racismo constitucional​. Tal posicionamento pavimentou o caminho para que o tema chegasse ao Supremo Tribunal Federal (STF).


Em outubro de 2021, o STF julgou o Habeas Corpus 154248/DF, consolidando de vez essa equiparação. Por ampla maioria (8 votos a 1), o Plenário do STF decidiu que a injúria racial configura uma das modalidades de racismo, sendo, portanto, crime imprescritível e inafiançável, tal como os demais crimes de racismo previstos na Constituição​. Na ocasião, a Corte negou o habeas corpus impetrado pela defesa de uma mulher condenada por injúria racial, que buscava ver declarada a prescrição da pena alegando sua idade avançada​. Prevaleceu o entendimento de que, por se tratar de discriminação racial, a injúria racial não poderia se beneficiar de prazos prescricionais, alinhando-se à regra constitucional de imprescritibilidade do racismo​.


 O Ministro Edson Fachin, relator, enfatizou em seu voto que alterações legislativas anteriores já indicavam maior gravidade ao delito – destacando o fato de a ação penal da injúria racial ter se tornado pública condicionada (ou seja, passível de iniciativa do Ministério Público mediante representação da vítima) – e que tal crime, na essência, ofende não apenas a honra individual, mas a dignidade da coletividade atingida pelo preconceito​.

 Ficou vencido apenas o Ministro Nunes Marques, que sustentou ainda haver distinção entre injúria racial e racismo para fins prescricionais​, mas essa posição restou isolada.


O reconhecimento judicial impulsionou mudanças legislativas. Em 11 de janeiro de 2023, foi sancionada a Lei 14.532/2023, que alterou tanto o Código Penal quanto a Lei 7.716/1989, equiparando expressamente a injúria racial ao crime de racismo. Essa lei inseriu na Lei 7.716/89 um novo artigo 2º-A, definindo o ato de “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional” como crime de racismo, com pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa​.


 Consequentemente, a pena da injúria racial foi aumentada (antes era de 1 a 3 anos; passou a 2 a 5 anos de reclusão) e o crime passou a ser formalmente classificado entre os crimes resultantes de discriminação racial​.


 Além disso, a nova lei previu causas de aumento de pena para injúria racial quando praticada em conjunto por várias pessoas ou por funcionário público no exercício de suas funções, bem como quando ocorrida em contexto “descontraído” de diversão ou recreação, ou em eventos esportivos, religiosos, artísticos ou culturais – reconhecendo, assim, situações em que esse delito tem sido recorrente, como ofensas raciais em estádios de futebol ou em redes sociais, muitas vezes sob a alegação de “brincadeira” ou piada de mau gosto. Importante inovação trazida pela Lei 14.532/2023 foi também tornar a injúria racial inafiançável e imprescritível, igualando-a aos demais crimes de racismo quanto a essas características​.


 Na prática, isso significa que não se admite mais fiança para soltar alguém preso por injúria racial, nem a punição ficará impedida pelo decurso do tempo, não importando quantos anos se passem – a persecução continua possível a qualquer tempo. Outrossim, a ação penal para injúria racial passou a ser pública incondicionada, eliminando a necessidade de representação da vítima​.

 Essa mudança corrige um problema antes existente: muitas vítimas, por medo ou desconhecimento, deixavam de formalizar a representação no prazo legal, o que levava à impunidade. Agora, o Ministério Público pode agir de ofício ao tomar conhecimento de uma injúria racial, tal como já fazia nos crimes de racismo.


Em resumo, a evolução normativa e jurisprudencial recente promoveu uma convergência: injúria racial e racismo, antes separados por nuances legais, hoje se encontram alinhados em gravidade e tratamento jurídico. A injúria racial deixou de ser vista como ofensa menor para figurar no rol das práticas de racismo, com punição mais severa e caráter imprescritível​.


 Trata-se de uma resposta do ordenamento à realidade social, que clamava por maior rigor no combate ao racismo velado presente em ofensas individualizadas. A mudança também reflete um avanço civilizatório e constitucional, reafirmando o compromisso de tolerância zero com o preconceito racial. Não obstante, tais inovações suscitaram debates.


 Alguns penalistas apontaram que a elevação da pena mínima para 2 anos poderia, paradoxalmente, beneficiar réus de injúria racial praticada em certos contextos (como em redes sociais), pois antes a combinação do Código Penal previa pena mínima mais alta em casos de ampla divulgação​.


 Estudos indicaram que, tradicionalmente, a Justiça brasileira tendia a aplicar penas próximas do mínimo legal em crimes raciais; assim, com a nova lei, se os juízes continuarem adotando o mínimo, acabariam impondo penas menores do que antes em alguns casos​.


 Essa crítica, porém, não desmerece o valor simbólico e prático da reforma legislativa, que atende à necessidade de reconhecer a injúria racial como parte do fenômeno do racismo e de facilitar a persecução penal dessas condutas. Espera-se que a tendência dos tribunais seja interpretar a lei de modo a não abrandar a resposta estatal, aplicando penas proporcionais à gravidade concreta de cada caso.


 Em todo caso, a Lei 14.532/2023 representa um divisor de águas: conforme ressaltado por analistas, ela é “mais uma reparação conquistada pela população negra brasileira” e “vem para fortalecer uma cultura de respeito”​, inserindo-se num contexto mais amplo de luta contra o racismo.


No âmbito jurisprudencial, além do julgado histórico do STF no HC 154248, cabe mencionar a continuidade desse entendimento em casos posteriores. Tribunais Superiores e Cortes locais têm aplicado a imprescritibilidade às injúrias raciais ocorridas antes mesmo da lei nova, com base na interpretação constitucional dada pelo STF.

Assim, consolida-se a jurisprudência de que nenhum agressor pode se valer do passar do tempo para escapar à responsabilização por ofensas racistas. Paralelamente, decisões judiciais têm aprofundado a aplicação dessas normas em contextos específicos, como veremos especialmente na seara da violência doméstica e de gênero, onde a intersecção entre racismo e machismo traz desafios particulares.

 

Capítulo 3 – A Constitucionalização do Combate ao Racismo e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos

O forte tratamento conferido ao racismo no Direito brasileiro decorre diretamente de opções constitucionais e de compromissos internacionais assumidos pelo país. A Constituição Federal de 1988, em resposta ao histórico de discriminação e desigualdade racial no Brasil, consagrou não apenas o já mencionado art. 5º, XLII (que torna o racismo crime imprescritível e inafiançável)​, mas também elevou a promoção da igualdade e o repúdio ao preconceito a princípios estruturantes da República. No artigo 3º, inciso IV, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, está estabelecido “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”​.

 Este dispositivo evidencia a dimensão programática e orientadora das políticas públicas: o Estado brasileiro tem o dever de atuar para eliminar o racismo e outras formas de discriminação, garantindo o bem-estar geral. Ainda no art. 4º, VIII, a Constituição indica que a República rege-se, nas relações internacionais, pelo princípio do repúdio ao racismo, demonstrando que tal valor ultrapassa o âmbito interno e guia também a postura do Brasil no cenário externo.

Essas balizas constitucionais são reforçadas pela adesão do Brasil a diversos tratados internacionais de direitos humanos que condenam o racismo e a discriminação. No plano global, destaca-se a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), adotada pela ONU em 1965 e ratificada pelo Brasil em 1968, a qual obriga os Estados-partes a criminalizar e combater efetivamente o racismo em todas as suas manifestações. No âmbito regional, em 2013 foi aprovada no seio da Organização dos Estados Americanos a Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, da qual o Brasil tornou-se signatário ativo. Em 2021, o país ratificou formalmente essa Convenção, assumindo o compromisso de prevenir, eliminar, proibir e punir atos e manifestações de racismo e intolerância​.

 Esse instrumento internacional, promulgado pelo Decreto nº 10.932/2022, passou a integrar o ordenamento jurídico pátrio com força normativa equivalente à de emenda constitucional (pois teve aprovação congressual conforme o art. 5º, §3º da CF)​.

 A Convenção Interamericana define discriminação racial de maneira abrangente, incluindo quaisquer distinções ou restrições, em esfera pública ou privada, que tenham por propósito ou efeito anular o reconhecimento ou exercício de direitos humanos em igualdade de condições, baseadas em raça, cor, ascendência ou origem nacional/étnica​.

 Ao internalizá-la, o Brasil reforça seu arcabouço jurídico antirracista, sinalizando que o combate ao racismo é política de Estado permanente e prioritária.

Portanto, há uma clara constitucionalização e internacionalização do dever de enfrentar o racismo. A combinação de normas internas – Constituição e leis infraconstitucionais – com obrigações internacionais cria um ambiente jurídico robusto: atos de racismo (entendidos agora em sentido amplo, incluindo a injúria racial) violam frontalmente a Constituição de 1988 e instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Esse amparo normativo fornece base para políticas afirmativas (como cotas e programas de inclusão, amparados no art. 7º, XX e art. 5º da CERD) e para atuação firme do sistema de Justiça no sancionamento de condutas racistas. A constitucionalização implica também que normas antirracismo possuem status diferenciado – por exemplo, considera-se que a imprescritibilidade do racismo é cláusula pétrea ou princípio imutável, dada sua conexão com a dignidade humana e os objetivos fundamentais da República. Ademais, os tratados de direitos humanos sobre discriminação racial, muitos incorporados com status supralegal ou constitucional, orientam a interpretação das leis domésticas. Isso embasa, por exemplo, decisões judiciais inovadoras, como a do STF que enquadrou a homotransfobia como forma de racismo (AO 26/DF, 2019), e a própria equiparação da injúria racial ao racismo, alinhada ao espírito dessas convenções internacionais.

A presença desses mandamentos constitucionais e compromissos internacionais também legitima a atuação de órgãos como o Ministério Público na defesa da igualdade racial como interesse difuso, a promoção de ações civis públicas contra discriminação e a formulação de políticas públicas de prevenção. Em suma, o combate ao racismo no Brasil está alicerçado em um sólido fundamento constitucional e internacional, que reconhece o racismo como fenômeno estrutural a ser erradicado. A Constituição de 1988, marcada pelo pós-regime militar e pelo ideal de construir uma sociedade livre, justa e solidária, fez do antirracismo uma de suas pedras angulares. Resta, entretanto, efetivar esses comandos no dia a dia, missão em que se insere a articulação das leis penais (como as que tratam de injúria racial) com políticas educacionais, sociais e culturais.

Capítulo 4 – Interseccionalidade: Raça, Gênero e Classe na Análise da Violência DomésticaPara compreender plenamente as dinâmicas da violência doméstica no Brasil, é imprescindível adotar uma perspectiva interseccional, isto é, considerar conjuntamente fatores de raça, gênero e classe social na experiência das vítimas. O conceito de interseccionalidade, desenvolvido por autoras como Kimberlé Crenshaw, revela que as opressões não atuam de forma isolada; ao contrário, elas se entrelaçam e potencializam. Assim, uma mulher negra e de baixa renda pode estar sujeita a múltiplas camadas de vulnerabilidade: o sexismo, o racismo e a desigualdade econômica. No contexto brasileiro, marcadamente influenciado por um passado de escravidão e hierarquias raciais, essa realidade é particularmente evidente.

Pesquisas recentes demonstram de forma empírica como gênero, raça e classe combinam-se na violência doméstica. De acordo com levantamento do DataSenado (2023) sobre violência contra as mulheres negras, 55% das mulheres que sofreram violência em 2022 no Brasil eram negras (pretas ou pardas)​ – percentual superior à representação dessas na população feminina total, indicando sobremaneira que a população negra é atingida em proporção elevada. Entre as mulheres vítimas de violência sexual registradas em delegacias, 62% eram negras​. No caso de homicídios de mulheres, os dados são ainda mais alarmantes: de 3.373 mulheres assassinadas em 2022 com informação de cor/raça, 67% eram negras​.

 Tais estatísticas refletem o fenômeno já apontado em estudos de segurança pública de que, nas últimas décadas, a violência letal contra mulheres brancas vem caindo, enquanto contra mulheres negras vem aumentando, agravando a disparidade racial nas taxas de feminicídio.

A dimensão econômica (classe) também se revela crucial. Mulheres em situação de pobreza ou dependência financeira tendem a permanecer mais vulneráveis em relações abusivas. No Brasil, as mulheres negras ocupam as faixas de menor renda de forma desproporcional: a maioria (66%) vive com renda familiar de até dois salários mínimos​ e enfrentam maiores dificuldades de acesso a educação (apenas 14% concluem o ensino superior)​.

 Essa condição econômica precária tem impacto direto na capacidade de reagir à violência doméstica. Conforme a mesma pesquisa, 32% das mulheres negras que não possuem renda suficiente para se manter declararam já ter sofrido violência doméstica – praticamente 1 em cada 3​. Além disso, entre as mulheres negras sem renda própria que sofrem violência, 85% convivem com o agressor​, evidenciando a dificuldade de romper o ciclo de abuso quando há dependência financeira e coabitação forçada. Mesmo quando possuem filhos menores, a dependência permanece: 80% das mulheres negras vítimas, com filhos menores de 18 anos, residem com o agressor​.

 Esses números revelam que a vulnerabilidade econômica e o fator racial juntos agravam o risco e a continuidade da violência: a falta de recursos impede a vítima de deixar o lar ou buscar ajuda, perpetuando a submissão.

No aspecto cultural e histórico, não se pode ignorar os resquícios do passado escravista e colonial que posicionam as mulheres negras em situação de desvantagem estrutural. Autoras apontam que a sociedade brasileira carrega uma herança em que a mulher negra é vista de forma estigmatizada e hipersexualizada, muitas vezes relegada a papéis subalternos (como o da “empregada doméstica”) e alvo preferencial de violência. Como ressaltam Zimmermann e Muniz, há uma “permanência intrínseca do racismo” que, aliada ao sexismo, submete as mulheres negras a “uma posição hierárquica inferior e negativada” na sociedade​.

 Ou seja, machismo e racismo operam conjuntamente: o machismo contribui para naturalizar a dominação e agressão contra as mulheres em geral, enquanto o racismo reforça a desvalorização específica das mulheres negras, percebidas por agressores (muitas vezes até dentro de sua própria comunidade) como menos dignas de respeito ou proteção. Esse caldo cultural resulta em formas particularmente cruéis de violência: mulheres negras relatam sofrer não apenas violência física de parceiros ou familiares, mas também violência psicológica e moral de cunho racista, sendo xingadas por termos raciais depreciativos durante as agressões​.

 O emprego de estereótipos raciais nas ofensas (como chamar a vítima de "negra burra", "negra imunda", etc.​) causa dano psicológico profundo, agravando o trauma da violência doméstica com o componente do ódio racial.

 Nessas situações, a mulher negra é vitimada enquanto mulher e enquanto pessoa negra, numa experiência singular que difere da vivida por mulheres brancas vítimas de violência doméstica ou por homens negros vítimas de racismo. Trata-se de uma violência multidimensional.

A interseccionalidade também se manifesta na resposta (ou falta dela) das instituições. Frequentemente, mulheres negras encontram mais obstáculos para acessar a justiça e os serviços de proteção. Relatórios indicam que elas demoram mais a procurar ajuda e, quando procuram, nem sempre são levadas a sério – reflexo do racismo institucional. Por exemplo, pode ocorrer revitimização em delegacias, com atendentes desqualificando a gravidade da denúncia por vieses inconscientes relativos à cor ou condição social da vítima. Além disso, a dependência econômica pode dificultar a obtenção de advogado, e embora existam defensorias públicas, a sobrecarga do sistema faz com que muitas casos não tenham acompanhamento adequado. Tais fatores estruturais colaboram para a subnotificação e impunidade.

Por outro lado, políticas públicas recentes vêm tentando abordar essa interseção. O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres incorpora diretrizes específicas para mulheres negras; o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) reconhece a necessidade de ações afirmativas de gênero e raça. Organismos como a ONU Mulheres e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos têm recomendado ao Brasil que adote perspectiva interseccional no enfrentamento da violência contra a mulher, direcionando recursos para as mais vulneráveis (no caso, as mulheres negras, indígenas e periféricas).

Em conclusão deste capítulo, reafirma-se que a violência doméstica não é homogênea: ela espelha as desigualdades da sociedade. No Brasil, uma sociedade estruturalmente racista​ e marcada por desigualdades socioeconômicas, a mulher negra pobre está na encruzilhada dessas opressões. Reconhecer isso não significa hierarquizar vítimas, mas sim aprimorar a resposta estatal para atender a todas. Uma mulher branca de classe média agredida pelo marido enfrenta principalmente a dimensão de gênero da violência; já uma mulher negra da favela agredida pelo companheiro enfrenta gênero, raça e pobreza simultaneamente – requerendo, portanto, políticas integradas que considerem segurança, autonomia econômica e combate ao racismo. Nos próximos capítulos, veremos como o ordenamento tem lidado, em particular, com situações em que racismo e violência de gênero convergem, como os casos de injúria racial praticada em contexto doméstico e familiar.

Capítulo 5 – Aplicação da Lei Maria da Penha em Casos de Agressões Raciais entre Mulheres

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) estabelece mecanismos de prevenção e repressão à violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo amplamente reconhecida como um marco no enfrentamento da violência de gênero. Uma questão que se coloca é: essa lei alcança situações em que a agressão assumiu conteúdo racial, especialmente quando ocorre entre mulheres (isto é, quando a ofensora também é do sexo feminino)? A resposta jurídica, à luz da doutrina e jurisprudência, é positiva: a proteção da Lei Maria da Penha concentra-se na condição de vulnerabilidade da vítima mulher, independentemente do gênero do agressor.

De início, vale lembrar que o art. 5º da Lei Maria da Penha define a violência doméstica e familiar contra a mulher como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, independente de coabitação​.

 Note-se que a lei menciona violência psicológica e moral – categorias em que se encaixa perfeitamente a injúria racial dirigida à mulher no contexto doméstico. Chamar reiteradamente uma mulher de insultos racistas dentro de casa, além de constituir crime de injúria racial, configura violência psicológica (pois causa sofrimento emocional, humilhação) e moral (dano à honra) contra essa mulher. Portanto, tais condutas acionam os mecanismos protetivos da Lei Maria da Penha.

Não há exigência legal de que o agressor seja homem. O entendimento majoritário dos tribunais é de que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada mesmo quando a violência é praticada por outra mulher, desde que presentes as circunstâncias domésticas, familiares ou de relação íntima previstas na lei​.

 Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu ser cabível a Lei Maria da Penha em conflitos entre mãe e filha​.

 Nessa linha, uma decisão relatada pelo Min. Jorge Mussi (HC 277.561/AL) reconheceu a incidência da lei em um caso de agressão de filha contra mãe, enfatizando que o objeto de tutela da LMP é “a mulher em situação de vulnerabilidade, não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima, independentemente do gênero do agressor”​.

 O critério determinante, segundo o STJ, é a existência de um contexto de relação de poder e submissão que coloque a mulher em posição de hipossuficiência ou vulnerabilidade frente ao agressor, o que pode ocorrer mesmo entre pessoas do mesmo sexo​.

 Assim, casos de nora que agride sogra, irmã que agride irmã, companheira que agride a parceira em relacionamento homoafetivo, todos podem atrair a aplicação da Lei Maria da Penha, se comprovado o elemento da violência de gênero (entendida como o domínio, controle ou menosprezo da condição de mulher da vítima) no contexto doméstico ou familiar.

No que tange especificamente às agressões raciais entre mulheres, podemos imaginar situações como: uma mulher branca proferindo injúrias racistas contra uma mulher negra no âmbito familiar (por exemplo, uma sogra branca ofendendo a nora negra, ou uma companheira agredindo verbalmente a outra com termos racistas).

Nesses casos, há dupla motivação de gênero e raça. A mulher negra vitimada é alvo da violência por parte de alguém de seu convívio doméstico e, ao mesmo tempo, tal violência assume a forma de injúria racial, atingindo-a em razão da cor da pele. A jurisprudência tem enquadrado essas condutas tanto na Lei Maria da Penha quanto na lei penal substantiva. Em decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ficou caracterizada a injúria racial praticada em situação de violência doméstica, onde o réu (tio da vítima) proferiu xingamentos de conotação racial contra sua sobrinha e a agrediu fisicamente com um soco​.

 O agressor foi condenado pelos dois crimes: injúria racial (art. 140, §3º, CP) e vias de fato (lesão leve), aplicando-se conjuntamente a Lei 11.340/2006​. O fato de o réu também ser negro não impediu a caracterização do delito, pois comprovou-se o dolo de discriminar e menoscabar a vítima pela cor da pele​. Esse exemplo ilustra que a lei se atém à conduta e à intenção discriminatória, não importando a raça do agressor – inclusive pessoas negras podem cometer injúria racial contra outros negros, reproduzindo estigmas racistas.

Outro caso ilustrativo descrito em julgados do TJDFT envolveu um companheiro que, diariamente, chamava sua esposa negra de “negra burra, negra safada, negra porca, negra imunda”, entre outros insultos, muitas vezes na presença da filha do casal​.

 Ficou evidenciado que o agressor valia-se de elementos referentes à raça e cor para ofender a dignidade da vítima de forma agravante, caracterizando injúria racial continuada no contexto de convivência doméstica. A Justiça, além de condená-lo criminalmente, destacou que a palavra da vítima tem especial credibilidade nesses casos de violência doméstica, sobretudo quando corroborada por testemunhos, exatamente por ocorrerem geralmente no ambiente privado​.

 Essa observação demonstra a sintonia do Judiciário com os parâmetros da Lei Maria da Penha, que reconhece as particularidades probatórias da violência intrafamiliar.

Portanto, quando uma mulher é vítima de injúria racial por outra pessoa no contexto doméstico ou familiar, ela pode e deve se valer dos mecanismos da Lei Maria da Penha. Isso significa que ela tem direito a medidas protetivas de urgência (como ordem de afastamento do agressor do lar, proibição de contato, etc.), atendimento prioritário por delegacia especializada (DEAMs), apoio psicossocial e jurídico, entre outros instrumentos previstos. Ao mesmo tempo, a dimensão racial da ofensa será objeto da persecução penal específica, agora com o rigor da Lei 14.532/2023 (ação penal pública incondicionada e pena potencialmente mais alta).

Importante notar que recentes aperfeiçoamentos legais buscaram dissipar controvérsias a esse respeito. Em 2023, a Lei 14.550/2023 introduziu o art. 40-A na Lei Maria da Penha, explicitando diretrizes sobre competência e aplicação da lei quando a violência é praticada por mulheres. Tal mudança visou consolidar o entendimento de que a presunção de violência de gênero abrange os casos em que a agressora também é mulher, evitando decisões desencontradas sobre o tema. Doutrinadores como Ávila e Bianchini, que participaram da elaboração desse anteprojeto, defenderam que “sempre que houver violência contra a mulher em contexto de coabitação, relação íntima de afeto ou familiar, haverá incidência da Lei Maria da Penha”, alinhando-se ao propósito de ampliação da proteção da mulher vítima de violência doméstica​.

 Essa interpretação reforça inclusive casos de injúria racial: se a ofendida é mulher e a agressão ocorre num contexto abrangido pelo art. 5º da LMP, deve-se aplicar a lei especial, ainda que o elemento de gênero possa não ser imediatamente evidente (por exemplo, uma briga de vizinhas que coabitam, motivada inicialmente por racismo – a relação de convivência e o impacto de gênero não deixam de existir, pois a vítima é atingida em sua condição de mulher vulnerável no ambiente doméstico compartilhado).

Em suma, a Lei Maria da Penha se aplica em casos de agressões raciais entre mulheres sempre que a vítima estiver inserida na situação de vulnerabilidade de gênero prevista na lei (doméstica, familiar ou relação íntima)​.

 Essa aplicação cumulativa das legislações – antirracista e de proteção à mulher – permite uma resposta mais completa do sistema de justiça, reconhecendo todas as facetas da violência sofrida. A mulher negra, duplamente vitimada pelo machismo e pelo racismo, tem seu direito resguardado tanto no âmbito penal (punição do crime de injúria racial qualificado) quanto no âmbito das medidas protetivas e políticas integradas da Lei Maria da Penha, que visam sua segurança e emancipação.

 

Capítulo 6 – Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Perspectiva Antidiscriminatória

Tanto o enfrentamento do racismo quanto o da violência doméstica têm, em sua raiz, a tutela de valores fundamentais consagrados na Constituição: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e o princípio da igualdade e não discriminação (art. 5º, caput e incisos). A dignidade da pessoa humana é fundamento da República e representa o reconhecimento de que todo ser humano possui um valor intrínseco, merecendo respeito e proteção contra tratamentos degradantes. As condutas de injúria racial e violência doméstica representam violações diretas a essa dignidade, pois submetem a vítima a humilhação, sofrimento e negação de seus direitos básicos.

No caso da injúria racial, o ataque racista fere não apenas a honra subjetiva da pessoa, mas atinge sua identidade mais profunda, negando-lhe igual valor enquanto ser humano de determinada cor ou etnia. É uma afronta à igualdade em sua dimensão mais essencial. Por isso, o ordenamento passou a tratá-la com severidade semelhante à do racismo, reconhecendo o caráter altamente lesivo à dignidade de expressões racistas, mesmo em contextos individuais​.

 Ao proferir julgamento no STF sobre injúria racial, o Ministro Luiz Fux salientou que a sociedade brasileira, marcada por 400 anos de escravidão, precisa tornar efetivas as normas constitucionais antirracismo “não só pela previsão abstrata, mas pela punição” das condutas discriminatórias​.

Essa fala reflete a compreensão de que a dignidade das pessoas negras – historicamente vilipendiada por um sistema escravocrata e racista – só será realmente garantida mediante ação concreta e repressão eficaz ao racismo. Ou seja, punir o racismo (inclusive na forma da injúria racial) é dar concretude ao valor da dignidade humana e ao princípio da igualdade.

Na violência doméstica, de modo semelhante, o que se está protegendo é a dignidade da mulher enquanto sujeito de direitos, pondo fim a um ciclo histórico de subjugação. A constitucionalidade da Lei Maria da Penha foi reafirmada pelo STF, reconhecendo-se que ela não viola o princípio da igualdade ao criar mecanismos específicos de proteção para mulheres, mas sim concretiza os comandos constitucionais de combater a discriminação de gênero e assegurar a dignidade das mulheres, grupo tradicionalmente oprimido (STF, ADI 4424). A violência doméstica é vista como expressão da desigualdade de poder entre homens e mulheres; ao combatê-la, o Estado promove a igualdade material de gênero e garante às mulheres o direito fundamental à integridade física e psicológica e à vida. Esse entendimento foi reforçado pelo Brasil ao aderir à Convenção de Belém do Pará (1994), tratado interamericano que reconhece a violência contra a mulher como violação de direitos humanos.

A perspectiva antidiscriminatória unifica esses campos ao afirmar que nenhum ser humano deve ser discriminado ou violentado por pertencer a determinado grupo (seja étnico-racial, seja de gênero, classe, orientação sexual, etc.). Tanto o racismo quanto o machismo são sistemas de dominação que negam a humanidade plena de suas vítimas. Por isso, o ordenamento jurídico busca ferramentas para desmantelá-los, sempre sob a égide da dignidade humana. A ideia de direitos fundamentais aplicados aqui inclui: o direito à igualdade (art. 5º, caput, CF), o direito à vida e à segurança pessoal, o direito à honra e imagem, o direito à integridade física e psíquica, e o direito à não discriminação. No caso específico da mulher negra vítima de violência, há uma convergência de violações de direitos fundamentais – direito à igualdade racial, direito à igualdade de gênero, direito à integridade, etc. A resposta jurídica deve ser capaz de abarcar todos esses aspectos.

No plano legislativo, a dignidade humana e os direitos fundamentais orientam a interpretação de dispositivos. Por exemplo, diante de uma injúria racial, o juiz deve ter em mente que a tutela da honra ali não é apenas individual, mas guarda relação com a proteção da dignidade de toda a coletividade discriminada (daí porque a injúria racial não pode ser relativizada como mera “ofensa leve” ou piada). Na aplicação de penas, o julgador há de considerar que comportamentos racistas ou misóginos carregam um desvalor social acentuado. Isso se reflete, por exemplo, na tendência de se negar benefícios como a transação penal ou suspensão condicional do processo para acusados de injúria racial, equiparando-os na prática a crimes mais graves que não admitem tais benefícios.

Sob a ótica constitucional, pode-se dizer que o enfrentamento dessas violências concretiza vários direitos fundamentais de segunda dimensão (direitos sociais difusos) e terceira dimensão (direitos de fraternidade). A proteção dos grupos vulneráveis – negros, mulheres, pobres – é requisito para a construção de uma sociedade justa (como reza o preâmbulo constitucional). O princípio da isonomia também exige tratamento desigual para equilibrar diferenças: daí leis específicas como a Maria da Penha e políticas afirmativas de equidade racial. Tudo isso converge para a efetivação da dignidade humana.

Além do mais, o reconhecimento do racismo estrutural no Brasil traz a necessidade de ações estatais estruturais. Racismo estrutural significa que a própria estrutura social foi edificada de forma a favorecer certos grupos (brancos) em detrimento de outros (negros, indígenas)​.

 Suas manifestações incluem desde disparidades em representação política (a maioria da população é negra, mas mais de 90% dos parlamentares são brancos, por exemplo​) até a alarmante estatística de violência contra jovens negros (um jovem negro assassinado a cada 23 minutos no Brasil)​.

 No contexto de gênero, fala-se também em sexismo institucional e racismo institucional quando órgãos do Estado operam de modo discriminatório. O sistema de justiça não está imune: reconhecendo isso, o Conselho Nacional de Justiça lançou em 2020 um Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, e alguns tribunais incorporaram diretrizes de enfrentamento ao racismo institucional. A dignidade da pessoa humana exige que o próprio aparato judiciário se aperfeiçoe para eliminar vieses e assegurar que mulheres e pessoas negras tenham seus casos analisados com igualdade e empatia.

Em síntese, a luta contra a injúria racial e a violência doméstica é, em última análise, a luta pela efetividade de direitos humanos básicos. A perspectiva antidiscriminatória demanda que interpretemos e apliquemos o Direito sempre levando em conta o impacto das normas sobre grupos historicamente marginalizados. Quando um promotor decide denunciar uma injúria racial como racismo, quando um juiz defere uma medida protetiva para uma vítima de abuso, ou quando um tribunal reconhece a imprescritibilidade de um crime de ódio, não estão apenas cumprindo a letra da lei – estão realizando os valores fundamentais da Constituição de 1988, que coloca a dignidade, a igualdade e a segurança de todos (especialmente dos vulneráveis) como prioridade absoluta.

Capítulo 7 – O Papel do Ministério Público e das Defensorias na Promoção da Igualdade Racial e de Gênero

A efetividade das leis e políticas antidiscriminatórias depende fortemente da atuação das instituições responsáveis por fazê-las cumprir. Entre elas, destacam-se o Ministério Público e as Defensorias Públicas, cujas atribuições constitucionais os posicionam como atores-chave na promoção da igualdade racial e de gênero.

O Ministério Público (MP), definido pelo art. 127 da CF como defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, tem no combate ao racismo e à violência doméstica um de seus deveres institucionais. No âmbito criminal, cabe ao MP promover a ação penal pública nos casos de racismo e, agora, de injúria racial (que se tornou ação incondicionada), bem como nos crimes relacionados à violência doméstica (lesões corporais, ameaças, descumprimento de medidas protetivas, etc.), nos quais atua independente da vontade da vítima em muitos casos, justamente para protegê-la. Assim, uma vez que a vítima noticie a injúria racial ou agressão doméstica, ou que se tenha conhecimento por outros meios, o MP deve agir prontamente para denunciar o agressor, reunir provas e requerer medidas protetivas cabíveis.

Mas o papel do MP vai além da esfera penal. Como guardião dos direitos difusos e coletivos, o Ministério Público pode ingressar com ações civis públicas contra práticas discriminatórias institucionais ou coletivas. Por exemplo, Promotorias de Justiça já moveram ações contra empresas acusadas de racismo em políticas de contratação, contra estabelecimentos que segregaram clientes, e até contra o Estado por omissão em políticas de proteção a mulheres vítimas (pleiteando melhorias estruturais em delegacias, abrigos, etc.). Muitos estados instituíram grupos especializados dentro do MP: Promotorias de Direitos Humanos ou Núcleos de Enfrentamento ao Racismo, e Núcleos ou Promotorias de Violência Doméstica. Esses órgãos especializados capacitam os promotores para lidarem com as peculiaridades desses temas e articulam iniciativas de sensibilização e prevenção junto à comunidade. É comum, por exemplo, MPs estaduais promoverem campanhas educativas sobre racismo, palestras em escolas, ou semanas de conscientização sobre violência doméstica e Lei Maria da Penha.

O MP também tem competência para fiscalizar a correta aplicação das leis. Assim, cabe-lhe zelar para que a Polícia registre adequadamente as ocorrências de injúria racial (sem descaracterizá-las como mera injúria simples) e que nas delegacias especializadas haja atendimento digno às vítimas. Em audiências e julgamentos, os promotores devem trazer a perspectiva dos direitos fundamentais violados, evitando acordos indevidos que minimizem a gravidade dos delitos. A figura do assistente de acusação, muitas vezes exercida por advogados das vítimas, pode ser desnecessária quando o MP age com rigor na defesa dos interesses da vítima e da sociedade, mas é sempre uma possibilidade a mais de apoio.

Já as Defensorias Públicas, instituições previstas no art. 134 da CF com a missão de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, também têm um duplo papel nessas questões. Tradicionalmente, a Defensoria atua na defesa de réus pobres – o que inclui muitos acusados de crimes, entre eles agressores domésticos e autores de injúria racial que não podem pagar advogado. Nesse mister, espera-se que a DP busque garantir o devido processo legal, evitando abusos e garantindo direitos dos acusados (mesmo os acusados de crimes graves têm direito a defesa técnica). No entanto, a Defensoria moderna também abraça a defesa de grupos vulneráveis enquanto vítimas. Cada vez mais defensorias estaduais criam núcleos especializados de defesa dos direitos da mulher, da população negra, da população LGBTQIA+, etc.

Por exemplo, a Defensoria Pública de São Paulo conta com um Núcleo Especializado de Promoção da Igualdade Racial, e um Núcleo Especializado de Proteção e Defesa dos Direitos das Mulheres, que atuam proativamente. Esses núcleos podem representar vítimas em casos emblemáticos, ajuizar ações civis públicas (sim, a Defensoria tem legitimidade ativa para tutela coletiva em certas matérias, nos termos do art. 134 c/c LC 80/94), além de promover orientação jurídica e educação em direitos.

No contexto de violência doméstica, a Defensoria frequentemente presta assistência jurídica direta às vítimas, seja orientando-as sobre seus direitos, seja requisitando medidas protetivas em seu favor, ou acompanhando processos criminais como assistente da acusação quando a vítima deseja (especialmente em locais onde a DP criou setores específicos para isso). Essa atuação é fundamental para equilibrar situações em que o agressor, mesmo pobre, às vezes intimida a vítima ou manipula o processo – a vítima representada tende a ter mais voz e proteção. Já em casos de racismo, defensorias têm movido ações de indenização em nome de vítimas contra ofensores ou entidades públicas, bem como atuado em audiências públicas e grupos de trabalho sobre segurança pública e racismo institucional.

Tanto o MP quanto a Defensoria também desempenham um papel de incidência política e institucional. Integrantes dessas carreiras participam de conselhos (por exemplo, conselhos de direitos da mulher, conselhos da igualdade racial), comitês interinstitucionais, e contribuem na formulação de propostas legislativas. Um caso notável é a influência de promotores e defensores em comissões parlamentares que discutiram a elaboração de leis como a própria Lei 14.532/2023 (houve audiências públicas em que membros do MP e DP se manifestaram sobre o projeto). Eles trazem para o legislador a experiência cotidiana dos tribunais, indicando falhas e sugestões. Assim, as instituições de justiça funcionam também como agentes de transformação social: quando um Promotor de Justiça ou um Defensor Público assume abertamente a pauta antirracista e de combate ao patriarcado, isso reverbera na sociedade e legitima a causa, mostrando que não se trata apenas de “ativismo”, mas do cumprimento da lei e da Constituição.

Por fim, cabe mencionar que tanto o MP quanto a Defensoria possuem prerrogativa de requisitar diligências investigatórias e informações de autoridades. Isso significa que podem, por exemplo, requisitar da polícia civil que instaure inquérito para apurar determinada denúncia de injúria racial (caso tomem conhecimento por mídia ou representação de ONG), ou cobrar da Secretaria de Segurança dados estatísticos sobre atendimento a mulheres negras, etc., o que contribui para um diagnóstico e cobrança de melhorias.

Em resumo, Ministério Público e Defensorias são pilares na promoção da igualdade racial e de gênero: o MP garantindo a responsabilização de ofensores e exigindo políticas públicas, e a Defensoria assegurando que vítimas vulneráveis tenham voz e acesso à justiça. Ambos, ao cumprirem suas funções, efetivam o princípio da indisponibilidade dos direitos fundamentais das pessoas discriminadas e violentadas, dando concreção ao disposto no art. 5º, caput, da CF (todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza).

Capítulo 8 – Estratégias Jurídicas de Responsabilização e Tutela da Vítima

Diante de um caso de injúria racial ou de violência doméstica, especialmente quando há interseccionalidade entre raça e gênero, o ordenamento jurídico disponibiliza diversas estratégias para responsabilização do agressor e proteção da vítima. Tais estratégias abrangem medidas na seara criminal, cível e administrativa, procurando garantir que a vítima seja amparada e que o ofensor sofra as consequências legais de seus atos.

No âmbito penal e processual penal, o primeiro passo para a responsabilização é a notícia do crime às autoridades – geralmente por meio de um Boletim de Ocorrência lavrado na delegacia. Com a nova lei de injúria racial (Lei 14.532/23), a vítima de ofensa racista não precisa mais se preocupar com prazos exíguos de representação criminal: a ação penal é pública incondicionada, cabendo à polícia e ao Ministério Público prosseguir independentemente de manifestação formal da vítima​.

 Contudo, é recomendável que a vítima formalize a denúncia o quanto antes, apresentando eventuais provas (como testemunhas, prints de mensagens no caso de injúria racial online, etc.). A autoridade policial deverá instaurar inquérito – ou, se for uma situação de flagrante, prender o agressor imediatamente, haja vista que injúria racial agora é inafiançável​, não podendo o delegado arbitrar fiança para soltura.

Durante a investigação e o processo, a vítima de violência doméstica conta com instrumentos específicos da Lei Maria da Penha. As medidas protetivas de urgência, previstas nos arts. 18 e 22 da Lei 11.340, podem ser requeridas já na delegacia ou diretamente ao juiz, pelo Ministério Público ou pela própria ofendida. Em casos de injúria racial no contexto doméstico, essas medidas são plenamente cabíveis, por se tratar de violência psicológica e moral. Assim, o juiz pode ordenar que o agressor (mesmo sendo mulher, se for o caso) se afaste do lar e mantenha distância da vítima, proibindo qualquer contato.

Pode também suspender porte de armas do agressor, ou determinar sua monitoração eletrônica, conforme o risco. O descumprimento de medida protetiva configura crime autônomo (art. 24-A da Lei Maria da Penha, cuja pena recentemente foi aumentada para 2 a 5 anos pela Lei 14.550/2023). Logo, se o agressor insistir em aproximar-se ou continuar ofendendo a vítima, poderá ser preso e processado por esse novo crime, além dos originais.

Outra estratégia processual é a possibilidade de ação penal pública condicionada à representação em certos crimes correlatos. Por exemplo, injúria simples (não racial) normalmente exige queixa da vítima; mas se ocorrer em contexto doméstico contra mulher, o STF já decidiu que deve tramitar como ação pública (ADI 4424). Hoje, praticamente todos os crimes cometidos com violência doméstica contra a mulher são de ação pública incondicionada ou, no mínimo, condicionada à representação, sendo esta irretratável após o recebimento da denúncia em alguns casos (como previu a Lei 13.641/2018 para o crime de desobediência a medidas protetivas).

Isso garante que, mesmo se a vítima for coagida a desistir, o processo possa seguir – embora a desistência da vítima em fase inicial possa levar à renúncia da representação nos crimes que ainda a exigem, como eventualmente injúrias não raciais. No caso de injúria racial, desde a lei nova não há mais possibilidade de retratação porque não há necessidade de representação inicial.

No curso do processo, a legislação prevê cuidados especiais com a vítima: ela tem direito a ser informada dos atos processuais, a prestar depoimento em condições que evitem a revitimização (por exemplo, alguns juízes permitem que a vítima de violência doméstica não tenha contato visual direto com o acusado durante a audiência, para reduzir intimidação), e a receber acompanhamento psicológico e jurídico. Em muitos juizados de violência doméstica, equipes multidisciplinares assessoram a vítima. Além disso, a vítima pode habilitar um assistente de acusação para atuar junto ao Ministério Público, reforçando a acusação – papel que às vezes é exercido pela Defensoria ou por advogados de ONGs de apoio, quando a vítima não pode pagar um particular.

No aspecto cível, uma via de responsabilização importante é a do pedido de indenização por danos morais e materiais sofridos pela vítima. A Constituição, em seu art. 5º, incisos V e X, assegura o direito de resposta e a indenização por dano moral ou à imagem. Assim, uma pessoa ofendida racialmente pode ingressar com ação cível de indenização contra o ofensor, cumulada ou não com pedido de retratação pública. Da mesma forma, a mulher vítima de violência doméstica pode pleitear indenização por todos os danos morais decorrentes do período de abuso, da humilhação, etc., e por danos materiais (gastos com saúde, mudança de residência, perda de emprego em razão da violência, por exemplo). Já há diversos precedentes judiciais fixando indenizações significativas em casos de injúria racial, reconhecendo que chamar alguém de termos racistas gera abalo moral indenizável – os tribunais têm arbitrado valores conforme a gravidade e repercussão do caso​.

 No caso de violência doméstica, embora nem sempre a vítima busque a via indenizatória (muitas vezes pelo agressor não ter recursos), essa possibilidade vem sendo incentivada para efeito simbólico de justiça reparadora.

Uma estratégia recente de tutela da vítima é a criação de juizados ou varas especializadas. Os Juizados de Violência Doméstica já são uma realidade prevista em lei; e alguns estados criaram delegacias especializadas em crimes raciais (como a DECRADI em São Paulo – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância). Tais órgãos especializados tendem a prestar atendimento mais humanizado e célere, reunindo equipe treinada nas particularidades do racismo e do sexismo.

 Por exemplo, na DECRADI ou similares, policiais conhecem a legislação antirracismo e tratam a vítima com a devida empatia, o que encoraja denúncias. Nos Juizados de Violência Doméstica, juízes e promotores dedicados ao tema conseguem dar andamento mais rápido aos processos e coordenar com serviços de apoio (abrigo, acompanhamento do agressor em grupos reflexivos, etc.). A integração entre esfera criminal e cível nesses juizados também facilita que a vítima obtenha, no mesmo local, a punição do agressor e decisões sobre divórcio, guarda de filhos, se necessário, evitando peregrinação judicial.

Outra medida importante é a representação do Ministério Público para medidas protetivas mesmo antes do processo penal. O MP pode, ao tomar ciência de risco, provocar o Judiciário para proteger a vítima (por exemplo, se a polícia não o fez). E se algum direito fundamental coletivo estiver em jogo, o MP pode ajuizar medidas mais amplas: imaginemos, por exemplo, uma cidade onde haja sucessivos casos de injúria racial em escolas – o MP pode propor um termo de ajustamento de conduta com a Secretaria de Educação para implantação de programa antirracismo, ou mesmo ação civil pública por omissão estatal.

Por fim, deve-se mencionar a figura da assistência social e programas de apoio como parte das estratégias. Embora não estritamente “jurídicas”, são previstas em lei (Maria da Penha prevê atendimento multidisciplinar) e fundamentais para a tutela integral da vítima. Isso inclui: inserção da mulher em programas de emprego e renda (rompendo dependência econômica), atendimento psicológico gratuito (centros de referência da mulher, grupos reflexivos para vítimas), e redes de suporte comunitário. No caso de injúria racial, movimentos negros e instituições antirracistas oferecem apoio às vítimas, orientando-as juridicamente e dando amparo emocional – algo que pode ser articulado com as ações estatais.

Portanto, a tutela da vítima hoje é concebida de forma ampla: não basta punir o agressor, é preciso proteger, amparar e empoderar a vítima para que ela supere o evento traumático e não volte a ser alvo. No Brasil, políticas como a Casa da Mulher Brasileira (centros integrados de atendimento) e serviços como o Disque 180 (para mulheres) e Disque 100 (direitos humanos em geral) são exemplos de canais de auxílio. Ainda há desafios, como garantir que uma mulher negra de área rural tenha o mesmo acesso a essas medidas que uma mulher urbana, ou que vítimas tenham conhecimento de seus direitos – o que exige constante divulgação.

Em suma, o arcabouço legal fornece ferramentas diversas: representação criminal (agora desnecessária para injúria racial, facilitando a ação penal), medidas protetivas (para garantir segurança imediata), ação penal pública incondicionada (evitando que crimes graves fiquem sem punição por inércia ou coerção da vítima), e possibilidade de reparação civil.

A efetividade dessas medidas depende de uma atuação coordenada das autoridades e da coragem das vítimas em denunciar. Cabe à sociedade civil também apoiar, por meio de campanhas que encorajem a denúncia de racismo e violência doméstica – lembrando que a Lei 14.532/23 permite a qualquer pessoa comunicar o crime de injúria racial, não precisando ser a própria vítima, e que no caso de violência doméstica a omissão cúmplice de familiares e vizinhos vem sendo combatida por campanhas (“em briga de marido e mulher, se mete a colher”, etc.).

Capítulo 9 – Propostas de Aperfeiçoamento Legislativo e Político-InstitucionalApesar dos avanços normativos recentes, persistem lacunas e desafios que demandam aprimoramentos tanto nas leis quanto nas práticas institucionais. Com base na análise desenvolvida, podem-se apontar algumas propostas de aperfeiçoamento para reforçar o combate à injúria racial e à violência doméstica sob perspectiva de gênero e raça:

  1. Educação e Capacitação Permanente: Uma medida fundamental é investir na capacitação de todos os operadores do sistema de justiça e segurança pública em relação ao racismo estrutural e às questões de gênero. Delegados, policiais, promotores, defensores e juízes devem receber treinamento contínuo sobre viés implícito, atendimento humanizado e perspectiva interseccional. Por exemplo, incluir nos cursos de formação e nos concursos conteúdo sobre direitos humanos, igualdade racial e Lei Maria da Penha. Isso reduziria manifestações de racismo institucional e garantiria abordagens mais empáticas às vítimas. Campanhas de conscientização também devem ser intensificadas, de forma intersetorial (escolas, mídia, serviços de saúde), para prevenir tanto o racismo quanto a violência de gênero desde a base, formando uma cultura de respeito.

  2. Aprimoramento de Dados e Estatísticas: É essencial melhorar a coleta de dados desagregados por gênero e raça em registros de ocorrências, inquéritos, processos e decisões judiciais. Somente com estatísticas precisas é possível avaliar políticas. A exigência de registrar a raça/cor das vítimas e agressores em boletins de ocorrência e processos deve ser cumprida em todo o país – hoje há subnotificação ou inconsistência. Do mesmo modo, desenvolver sistemas integrados entre delegacias, Ministério Público e Judiciário, possibilitando saber quantos casos de injúria racial são denunciados, quantos viram denúncia, condenação, etc., e quantos envolvem contexto doméstico. Esses dados subsidiarão políticas mais focadas (por exemplo, se se perceber aumento de injúrias raciais em determinado contexto, direcionar campanhas ali).

  3. Fortalecimento Institucional de Órgãos Especializados: A criação de mais Delegacias Especializadas em Crimes de Ódio e de Núcleos especializados no MP e DP é crucial. Onde não houver DECRADI, as delegacias comuns deveriam ao menos ter um setor ou equipe referência para casos de racismo. No Ministério Público, poderia haver em todas as capitais uma Promotoria exclusiva para crimes de intolerância (racismo, LGBTfobia, etc.), assim como já existem as de violência doméstica. Na Defensoria, ampliar os núcleos de defesa da mulher e da igualdade racial, garantindo equipe multidisciplinar (psicólogos, assistentes sociais) para atuar junto com os defensores. Essas especializações permitem expertise e sensibilidade maiores. Ademais, dotar esses órgãos de recursos materiais e financeiros para suas atividades (viaturas, equipamentos, pessoal de apoio) deve ser prioridade orçamentária – leis de diretrizes orçamentárias poderiam prever rubricas específicas para políticas de enfrentamento ao racismo e à violência contra a mulher.

  4. Aperfeiçoamento da Legislação Penal e Processual: Embora a Lei 14.532/2023 tenha representado grande avanço, o legislador pode avaliar alguns ajustes. Por exemplo, corrigir a discrepância técnica apontada por estudiosos quanto à pena mínima para injúria racial praticada em ampla divulgação (redes sociais)​, evitando interpretações favoráveis à redução de pena – talvez esclarecendo no Código Penal que o aumento de pena por meio de comunicação (art. 141, II) incide cumulativamente com a nova tipificação. Outra ideia legislativa seria incluir explicitamente no rol da Lei Maria da Penha a violência motivada por discriminação racial como uma das formas de violência psicológica, reforçando o entendimento já aplicado pelos tribunais de que injúrias raciais contra mulher configuram violência doméstica. No âmbito processual, poderia-se avançar na proteção à vítima, por exemplo, ampliando as hipóteses de depoimento especial (hoje voltado a crianças e vulneráveis) para mulheres que sofreram violência gravíssima, ou criando mecanismos de proibição de interrogatório vexatório sobre a vida pregressa da vítima (evitando culpabilização da vítima, especialmente em casos de estupro ou violência psicológica).

  5. Integração das Políticas de Raça e Gênero: Sugerem-se esforços para integrar as políticas públicas de promoção da igualdade racial com as de proteção às mulheres. Os órgãos governamentais competentes – atualmente, o Ministério da Igualdade Racial e o Ministério das Mulheres (no âmbito federal), bem como secretarias estaduais e municipais – devem atuar conjuntamente em programas destinados às mulheres negras. Por exemplo, projetos de capacitação profissional e geração de renda voltados a mulheres em situação de violência devem priorizar mulheres negras, que enfrentam as maiores vulnerabilidades (conforme dados evidenciados). A criação de casas-abrigo ou centros de atendimento específicos para mulheres negras vítimas de violência pode ser avaliada, tendo em vista relatos de que em alguns abrigos gerais há pouca compreensão das especificidades raciais. Alternativamente, garantir que todos os serviços tenham funcionários treinados em questões raciais.

  6. Ações Afirmativas no Sistema de Justiça: Para combater o racismo institucional, uma proposta é promover maior diversidade entre os profissionais da justiça e segurança. Incentivar a presença de pessoas negras e mulheres (especialmente mulheres negras) em delegacias, no Ministério Público, na Magistratura e na Defensoria – seja via cotas em concursos (dispositivos de cotas raciais já existem em alguns concursos públicos de tribunais e MPs), seja via nomeações e promoções que considerem pluralidade. A representatividade traz perspectivas diferentes e pode melhorar o atendimento. Concomitantemente, implementar rigorosos protocolos de enfrentamento a condutas discriminatórias dentro das instituições: por exemplo, corregedorias atentas a casos de policiais que tratem com descaso vítimas negras, ou membros do MP que usem estereótipos raciais indevidamente. A adoção do mencionado Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo CNJ, e de um possível Protocolo de Atuação com Perspectiva Racial, ajudaria a institucionalizar essas práticas.

  7. Engajamento Comunitário e Controle Social: Leis por si só não bastam; a sociedade civil deve ser parceira. Fortalecer os canais de diálogo do sistema de Justiça com movimentos sociais negros e feministas é recomendável. Instâncias como observatórios ou comitês consultivos com participação da sociedade podem acompanhar a implementação das leis. Por exemplo, um observatório de violência contra a mulher negra, com participação de universidades, ONGs e poder público, poderia apresentar relatórios e recomendações periódicas. Projetos de justiça restaurativa em comunidades também podem ser pilotos interessantes – círculos de discussão envolvendo ofensores e ofendidos, mediadores culturais, para construção de consciência, em complemento (nunca substituição) às sanções formais.

  8. Campanhas e Educação de Base: Propor iniciativas legislativas para incluir nos currículos escolares conteúdo mais robusto sobre igualdade racial e de gênero. A Lei 10.639/2003 já tornou obrigatória a história e cultura afro-brasileira nas escolas; isto deve ser plenamente implementado e somado a debates sobre respeito e diversidade. Programas como “Maria da Penha vai à escola” e “Promotoras Legais Populares” (formação de lideranças comunitárias) merecem expansão, com atenção especial a comunidades de maioria negra. Em termos de comunicação de massa, o Estado pode financiar campanhas contínuas: por exemplo, no Dia Internacional Contra a Discriminação Racial (21 de março) e no Agosto Lilás (mês de conscientização sobre violência doméstica), veicular mensagens claras de repúdio a injúrias raciais e apoio às vítimas, orientando como denunciar.

  9. Aperfeiçoamento das Estruturas de Proteção: Ampliar a rede de equipamentos de acolhimento: mais centros de referência de atendimento à mulher nas periferias e zonas rurais; linhas de denúncia anônima de racismo (estimulando testemunhas a denunciarem casos, como ofensas em estádios, ambientes de trabalho, etc.); criação de serviços especializados para vítimas de racismo, nos moldes do que existe para violência doméstica (talvez um centro de atendimento psicossocial a vítimas de racismo, dada a marca profunda que essas ofensas deixam). Incentivar as empresas a adotarem protocolos antirracismo e antiassédio, para que o ambiente de trabalho também seja seguro – isso pode ser via projetos de lei ou acordos setoriais.

  10. Legislação Complementar: Por fim, avaliar a necessidade de um marco legal antidiscriminação mais amplo. O Brasil possui legislações esparsas (Lei do Racismo, Lei Maria da Penha, Estatuto da Igualdade Racial, Lei Brasileira de Inclusão para pessoas com deficiência, etc.). Poderia ser estudada uma Lei Antidiscriminação Geral, que integrasse diversos aspectos e previsse, por exemplo, sanções administrativas para casos de discriminação em repartições públicas, ou obrigações para empresas prevenirem e remediarem casos de racismo e sexismo. Embora a consolidação legal tenha prós e contras, o debate em torno dela por si alinharia agendas e conscientizaria sobre todas as formas de intolerância.

Em todas essas propostas, subjaz a ideia de que o racismo e o patriarcado são estruturalmente enraizados, exigindo, portanto, respostas estruturais. A legislação penal – embora necessária para punir e simbolizar reprovação – não resolve sozinha problemas que têm raízes sociais profundas. Políticas redistributivas (de renda, educação, habitação) conjugadas com políticas afirmativas e um aparato legal firme formam o tripé para reduzir, a longo prazo, as desigualdades que geram violência. Por exemplo, se conseguirmos elevar a escolaridade e oportunidades de emprego para mulheres negras, e ao mesmo tempo desnaturalizar concepções racistas e sexistas desde cedo, provavelmente a incidência desses crimes cairá. Até lá, continuar aprimorando o arcabouço jurídico e a atuação estatal é imperativo para romper o ciclo de impunidade que historicamente imperou nesses casos.

ConclusãoA análise empreendida confirma a importância de uma abordagem interdisciplinar e interseccional para enfrentar os desafios da injúria racial e da violência doméstica no Brasil. Verificou-se que, no campo jurídico, houve progressos significativos: a injúria racial, outrora subestimada como ofensa menor, foi reconceituada como forma de racismo, passando a ser imprescritível e reprimida com maior severidade​; a legislação e a jurisprudência evoluíram para compreender que a violência contra a mulher não se limita à agressão física pelo cônjuge masculino, mas inclui ofensas psicológicas e morais de cunho discriminatório, mesmo quando praticadas por outra mulher, desde que inseridas num contexto de dominação de gênero​.

 Essa ampliação de horizontes normativos reflete a constitucionalização dos direitos fundamentais de igualdade e dignidade​ o cumprimento de tratados internacionais que repudiam o racismo e a violência de gênero em todas as suas manifestações​

Apesar das conquistas – como a Lei 14.532/2023 e as decisões paradigmáticas do STF e STJ – o estudo evidenciou que a plena efetividade dessas normas encontra barreiras na realidade social. O racismo estrutural e o patriarcado estão entranhados nas relações sociais, fazendo com que a mulher negra, em especial, permaneça em posição vulnerável e frequentemente invisibilizada. Dados mostraram a desproporcional vitimização de mulheres negras em casos de violência letal e doméstica​, reiterando a necessidade de políticas públicas focalizadas. A interseccionalidade entre raça, gênero e classe não é um conceito abstrato, mas uma condição concreta vivida por milhões de brasileiras, impondo ao Direito o desafio de responder de forma integrada.

Conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro dispõe hoje de ferramentas legais robustas para punir o racismo e a violência doméstica: crimes imprescritíveis, ações penais públicas incondicionadas, medidas protetivas céleres e uma jurisprudência atenta à proteção das vítimas. Contudo, o sucesso na aplicação dessas ferramentas depende de mudanças institucionais e culturais. Institucionalmente, recomenda-se o fortalecimento e a especialização dos atores do sistema de justiça (delegacias, promotorias e defensorias especializadas; formação continuada) e a melhoria na coleta de dados e monitoramento dos resultados. Culturamente, é imperativo continuar promovendo a educação em direitos humanos, desconstruindo estereótipos raciais e sexistas tanto nas escolas quanto nos meios de comunicação.

Este artigo propôs diversas medidas de aperfeiçoamento, desde ajustes legislativos pontuais até amplas reformas de políticas. Em destaque, apontou-se a urgência de garantir proteção integral às vítimas: punir ofensores é imprescindível, mas empoderar as vítimas e prevenir novas ocorrências é igualmente crucial. Assim, propugna-se uma visão de justiça que seja não apenas retributiva, mas também restaurativa e emancipatória, capaz de transformar as condições que propiciam a violência.

Em última análise, a luta contra a injúria racial e a violência doméstica insere-se na construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e igualitária. A Constituição de 1988 estabeleceu o ideal de um país “sem preconceitos de raça e sexo”​; quase quatro décadas depois, o arcabouço jurídico foi sendo moldado para perseguir esse ideal. Cabe agora à geração presente – de juristas, operadores do direito, educadores, gestores públicos e cidadãos – assegurar que tais normas sejam mais do que palavras no papel: que se traduzam em mudanças reais, onde nenhuma mulher seja agredida ou insultada por ser quem é. Somente então poderemos afirmar que a dignidade da pessoa humana no Brasil é, de fato, um valor universalmente respeitado, e que racismo e violência de gênero não têm mais espaço em nosso convívio social.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

  • ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. 2. ed. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Polén, 2019.

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  • BRASIL. Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Diário Oficial da União, 11 jan. 2022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D10932.htm.

  • BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, 6 jan. 1989.

  • BRASIL. Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. Altera dispositivos do Código Penal, tipificando o crime resultante de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Diário Oficial da União, 14 maio 1997.

  • BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Estatuto do Idoso (incluiu referência a pessoa idosa no art. 140, §3º do CP). Diário Oficial da União, 3 out. 2003.

  • BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União, 8 ago. 2006.

  • BRASIL. Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023. Altera o Código Penal e a Lei nº 7.716/1989 para equiparar a injúria racial ao crime de racismo. Diário Oficial da União, 12 jan. 2023.​

  • BRASIL. Lei nº 14.550, de 19 de abril de 2023. Dispõe sobre a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e aperfeiçoa a Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União, 20 abr. 2023.

  • CONJUR. NOVA LEI DE INJÚRIA RACIAL PODE BENEFICIAR RÉUS EM CRIMES VIRTUAIS, AFIRMA ESTUDO. Revista Consultor Jurídico, 3 nov. 2023. Renan Xavier. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-nov-03/lei-injuria-racial-beneficiar-reus-crimes-virtuais.​

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  • STF – Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 154248/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 28/10/2021. Tribunal Pleno. (Decisão: injúria racial é imprescritível por constituir espécie de racismo)​

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  • STF – Supremo Tribunal Federal. ADI 4424/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 09/02/2012. Tribunal Pleno. (Decisão: constitucionalidade da Lei Maria da Penha; ação pública incondicionada nos crimes de lesão corporal leve cometidos em contexto doméstico).

  • STJ – Superior Tribunal de Justiça. HC 277.561/AL, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 06/11/2014. (Tese: Aplicação da Lei Maria da Penha na relação mãe e filha; sujeito ativo pode ser mulher)​

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  • ZIMMERMANN, Tânia R.; MUNIZ, Danielle M. “Da injúria racial à violência institucional: interseccionalidade da violência de gênero sob a perspectiva da mulher negra”. Revista Direitos Culturais, v.13, n.29, 2018. (Discussão histórica e conceitual sobre racismo e machismo estrutural, injúria racial e Lei Maria da Penha)​ . Disponível em: https://doi.org/10.20912/rdc.v13i29.2598.

 

 
 
 

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